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Este autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

Fumo e Fogo

um argumento de
Miguel Clara Vasconcelos
e Joana Bértholo
trilha sonora de
Leonardo Outeiro
ilustrado por
Susa Monteiro

Maria tem 26 anos e dança com o fogo. O fumo que ascende é o de uma paixão que se consome.

1. APARTAMENTO DE MARIA, SALA – INTERIOR-EXTERIOR / TARDE
MARIA (26 anos) vive num apartamento na zona histórica de Viseu, que partilha com Zuzanne. São ambas bailarinas da companhia de dança do Teatro Viriato.
Maria veste roupa larga e confortável com que ensaia movimentos, no quarto, com alguns móveis arrastados para junto da parede e a porta aberta para o corredor. Em frente a um portátil, movimenta-se para um Zoom onde alguns colegas bailarinos ensaiam movimentos similares e uma voz marca o compasso.

 

COREÓGRAFA
(em off, vindo do Zoom)
1, 2, 3, 4 … 1, 2, 3, 4… 1,
2, 3, 4 … gira gira gira gira…

 

Grande plano do rosto de Maria que, ao girar, repara em qualquer coisa importante que acontece do lado de fora da janela do quarto. Pára de dançar.

 

COREÓGRAFA
(em off)
Maria, vamos.

 

Maria olha fixamente lá para fora, o rosto coberto de suor.

 

COREÓGRAFA
(em off)
Maria…?
Tudo bem…?
Maria…?

 

Nas diferentes janelas do Zoom os corpos suspendem os seus movimentos.
Plano mais aberto que nos permite ver Maria de costas a olhar o horizonte através da janela. Detrás de prédios, ao longe, erguem-se negras nuvens de fumo. Há um incêndio a uma dezena de quilómetros.
Um telemóvel vibra. O olhar de Maria passa do fumo para o telemóvel. Corta a chamada com um gesto e debruça-se sobre o ecrã do computador.

 

MARIA
Lena, está na hora. Vou sair.
(para todos no Zoom)
Até amanhã! Até amanhã.
Beijinhos.

 

No Zoom, vários acenos e “Beijinhos!”.
No mesmo plano aberto (fixo) em que vemos o fumo tingir o céu de negro, ouvimos baixar o ecrã do portátil. Maria passa algumas vezes: a tirar a camisa suada, volta com um vestido, volta a passar com uma bolsa.
Ouvimos passos no corredor e a porta da rua. Ao fundo a floresta arde. O céu enegrecido.

 

2. APARTAMENTO DE MARIA, ESCADAS DO PRÉDIO – INTERIOR / TARDE
Maria desce com agilidade as escadas do prédio.
Veste roupa esvoaçante, tem o cabelo arranjado e lábios pintados.
Cruza-se com ZUZANNE (24), austríaca, abrandando o passo mas sem chegar a parar.

 

ZUZANNE
(fluente, mas com sotaque)
Alõ, Maria.

 

MARIA
Alô…
Precisas de alguma coisa da rua?

 

ZUZANNE
Temos tofu?

 

MARIA
Já Não. Eu compro. Tschüss…

 

ZUZANNE
Aonde vais…?
Beijinhos.

 

3. APARTAMENTO DE MARIA, PORTA DA RUA – EXTERIOR / ANOITECER
Maria sai do prédio para uma rua estreita de lojas, àquela hora fechadas ou a fechar e com as montras iluminadas.
Ao cimo, no cruzamento da Rua Direita com a Rua Escura, um Volvo dos anos 80 faz-lhe sinais de luzes.
Ela dirige-se para o carro e entra.

 

4. PARQUE URBANO DE SANTIAGO, CARRO – INTERIOR / NOITE
Maria e MANUEL (38) fazem amor no banco de trás do carro dele, estacionado junto à instalação urbana «VISEU», da qual só aparecem as últimas letras no enquadramento – «EU».
Manuel está sobre Maria, que está de costas para ele. Ambos nus.
Ele tem os olhos fechados e ela observa os reflexos da palavra fora de foco, iluminada no vidro traseiro embaciado.

 

5. PARQUE URBANO DE SANTIAGO, ESTACIONAMENTO – EXTERIOR / NOITE
Dentro do carro parado, os corpos acalmaram.
Silêncio.
Uma das portas traseiras abre-se e Manuel sai para fumar.
Está em tronco nu e disfruta do frio da noite no corpo suado.
O contraste de temperatura provoca vapor, libertando-se dos ombros e peito.
Lá dentro, Maria acaba de se arranjar e passa para o lugar da frente, sem sair do carro.
Manuel liberta a primeira bafurada de fumo do cigarro já aceso, ampliada pela condensação da humidade no ar.
Manuel observa a instalação urbana iluminada, leva o cigarro à boca e puxa.

 

6. CAFÉ NUM PRÉDIO DE SUBÚRBIOS, ESPLANADA – EXTERIOR / MANHÃ
São 7 da manhã. No mesmo enquadramento da cena anterior, Manuel expele o fumo do cigarro.
Manuel tem vestida uma camisa azul escura, elegante mas amarrotada.
Maria tem a mesma roupa da noite anterior.
Estão sentados na esplanada.
Trata-se de um terraço nas traseiras de uma urbanização de cor amarela, branca e cinzenta, que dá para um jardim pouco ou nada frequentado, nas traseiras de prédios de vários andares onde se vêem múltiplos estendais de roupa.
A RAPARIGA DO CAFÉ (20) está a desinfectar outra mesa e cadeiras de plástico da esplanada.
A SENHORA DO CAFÉ (65) traz um galão, uma água com gás e dois croissants brioche com queijo, numa bandeja.
Pousa tudo na mesa deles e vai embora.

 

MARIA
Obrigada.

 

Manuel continua a fumar. Observa o fumo que se eleva do seu cigarro e Maria observa-o a observar.

 

MANUEL
Antigamente acreditava-se que o
fumo levava as nossas orações e
os nossos desejos até aos deuses.

 

Maria, sem saber o que dizer, aquece as mãos no seu galão quente, de onde se liberta vapor. Sopra para que esfrie. Manuel olha para ela e Maria começa a beber, devagarinho.

 

MANUEL
É por isso que pomos velas
nos bolos de aniversário…

 

MARIA
Não é pelo fogo? Achava que
era assim um símbolo qualquer…
da vida…

 

A Rapariga do Café aponta um comando ao televisor pendurado no tecto da esplanada, debaixo das varandas dos prédios.
Mal se ouve o som da televisão, mas Manuel reage.

 

MANUEL
Tire o som, por favor.

 

A Rapariga obedece e sai de campo.

Manuel e Maria olham as imagens sem som. São imagens de incêndios que afectam o interior do país, passando depois para imagens de outros incêndios, noutros lugares do mundo, nomeadamente na Austrália, na Amazónia e na floresta Siberiana.

 

MANUEL
Vês o fogo como
um símbolo de vida?

 

Manuel apaga o cigarro num cinzeiro triangular de plástico com a marca de um gin e começa a comer o croissant.

 

MARIA
(com os olhos no ecrã)
Disseram-me que o fogo pode
ser bom para a floresta.

 

MANUEL
Achas?

 

MARIA
Que faz bem aos solos, não sei…
Aos ecossistemas.

 

MANUEL
… aos ecossistemas…

 

MARIA
Sim. Que…
faz parte dos ciclos naturais.

 

Vemos os dois de costas a olhar o vazio, já desatentos ao televisor (pequeno no plano). Manuel deixa o croissant a meio para acender outro cigarro.

 

MANUEL
Não podemos continuar assim.

 

7. APARTAMENTO DE MARIA, ESCADAS DO PRÉDIO – INTERIOR / DIA
Maria sobe as escadas com compras num saco de papel.
Cruza-se com Zuzanne, que desce as escadas com roupa de treino e máscara higiénica. Vai correr.

 

MARIA
Trouxe tofu.

 

ZUZANNE
Bom dia, querida.

 

MARIA
Vou pôr na tua prateleira.

 

ZUZANNE
Obrigada!

 

MARIA
Tschüss!

 

8. APARTAMENTO DE MARIA, QUARTO – INTERIOR / DIA
Maria entra em casa. Mesmo plano fixo (cena 2 e 3) mas agora com o céu limpo e azul lá fora.
Maria abre a porta de um armário, fecha uma gaveta (sons) e reaparece com uma caixa metálica antiga.
Leva a caixa até ao colchão-cama ao nível do chão.
Deita-se e abre a caixa, com vários objectos de grande valor sentimental.
De entre eles, retira um caderno e abre-o.
Numa página, vemos um desenho de Manuel a fumar, como o vimos no café.
Maria arranca a folha.
Noutra página, estão colados dois bilhetes de avião Porto – Berlim.
Maria arranca também essa página.
Maria continua a folhear o caderno, com mais colagens e desenhos seus.

 

9. APARTAMENTO DE MARIA, CORREDOR – INTERIOR / DIA
Leva várias folhas rasgadas do caderno, uma garrafa de álcool-gel e fósforos até à varanda nas traseiras do apartamento.

 

10. APARTAMENTO DE MARIA, VARANDA – EXTERIOR / DIA
Maria está em frente a um pequeno fogareiro onde vemos o retrato desenhado de Manuel.
A folha de papel está impregnada de álcool-gel.
Acende três fósforos ao mesmo tempo e incendeia o papel.
Borrifa com mais álcool-gel, fazendo aumentar a chama.
Lança a folha com os bilhetes de avião colados e outras reminiscências do amor deles.
Maria fica a olhar para as folhas de papel a serem consumidas pelo fogo.
Grande plano do fogo. Som da floresta a arder.
Maria a olhar o fogo. O fumo eleva-se no ar, juntamente com algumas faúlhas.
Maria tosse.
Ouvimos o toque do seu telemóvel, vindo de dentro de casa. O telefone toca, toca, o plano continua junto ao fumo que sobe. Ouvimos a voz de MARIA ao telefone.

 

MARIA
(em off)
Outra vez?
Achei que isto tinha
ficado conversado…

É um bocado estranho…

Não é isso…

Nem sequer tenho prenda.

 

11. R. AMOR DE PERDIÇÃO, PARAGEM DE AUTOCARRO – EXTERIOR / DIA
Maria desce e o autocarro arranca. Enverga um vestido colorido. Caminha pelo passeio e toca à porta de uma moradia rica. Atende-a uma ORGANIZADORA DE EVENTOS (45) muito produzida e exageradamente afável.

 

ORGANIZADORA DE EVENTOS
(consultando uma lista)
Diga-me só o seu nome…

 

MARIA
Maria. Maria Esteves.

 

ORGANIZADORA DE EVENTOS
Aqui está. Maria Esteves + 1.
Virá mais tarde, o acompanhante?

 

MARIA
Sou só eu.

 

ORGANIZADORA DE EVENTOS
Ah, óptimo. Com certeza.
Venha comigo.

 

A Organizadora de Eventos guia-a pela entrada de uma casa visivelmente abastada até um jardim com piscina onde
brincam crianças pequenas e onde os adultos confraternizam entre si num ambiente relaxado.
Manuel está junto à sua MULHER (33) e duas crianças, ARTUR (6) e MADALENA (3). Artur corre na direcção de Maria. Abraçam-se. São muito cúmplices. Juntos aproximam-se do casal.

 

MULHER
(simpática, um pouco snob)
Maria, afinal veio, que bom.
O Manuel disse-me que anda muito
ocupada com os ensaios lá no Viriato.

 

MARIA
É verdade. Desculpe, nem tive tempo
para comprar… Vim sem presente.

 

MULHER
Ah, nem pense nisso. Os miúdos
iriam ficar tristíssimos se não viesse.

 

Manuel assiste à conversa entre as mulheres, atento mas sem intervir.
Maria é levada pela mão para longe dos adultos por Artur, que está contentíssimo por a ter ali. Madalena segue o irmão mais velho.

 

12. CASA DE MANUEL, CORREDOR E QUARTO – INTERIOR / DIA
Maria circula pelo interior de uma casa de classe média com obras de arte, artesanato de vários países, livros e brinquedos, alguns de plástico e outros com aspecto de antiguidade. Tem também fotografias de família emolduradas e penduradas na zona comum.
Maria sobe ao primeiro andar, parece dirigir-se para uma casa-de-banho, mas vê a porta entreaberta do quarto do casal e entra.
Do enorme janelão do quarto, observa o relvado…

 

13. CASA DE MANUEL, JARDIM – EXTERIOR / DIA
… junto a uma piscina onde se reúnem os convidados da festa.
Manuel e Artur brincam, entretanto cercados por outras crianças.
Manuel sente-se observado e ergue o olhar para a janela do seu quarto, mas não vê ninguém…

 

14. CASA DE MANUEL, QUARTO – INTERIOR / DIA
… Maria antecipou o gesto e recuou a tempo de não ser vista.
Deita-se na cama de casal.
Olha o tecto. Depois, vira-se de costas.

 

15. CASA DE MANUEL, JARDIM – EXTERIOR / DIA
Os adultos e as crianças reunem-se à volta de um bolo demasiado sofisticado para uma criança de 3 anos. A Organizadora de Eventos acende as três velas.
Madalena sobe para um banquinho em frente ao bolo, com a ajuda da Mãe, que fica a segurá-la.
A velocidade dos gestos começa a ficar cada vez mais lenta, ao início de forma imperceptível.

 

MANUEL
(tom doce, para Madalena)
Só se concretiza se apagares
todas de um só sopro.

 

A menina enche os pulmões.

 

MANUEL
Espera, temos de cantar os
“Parabéns” primeiro.

 

Maria observa Manuel com a filha.
Toda a gente começa a cantar ao ritmo das palmas.
Cantam mais devagar do que o normal e todos os movimentos que efectuam acontecem a metade da velocidade:

 

TODOS
(cantando e batendo palmas)
… à me-ni-na Ma-da-lena, u-ma
sal-va de pal-mas!

 

Madalena enche de novo os pulmões, inclina-se para a frente com a ajuda de Manuel e sopra, mal abanando a chama das velas.
Volta a encher os pulmões em simultâneo com a Mãe.
Madalena e a Mãe sopram ao mesmo tempo, conseguindo apagar as três velas.
Madalena fica fascinada com o fumo que se liberta lentamente das velas apagadas. O fumo desenha uma linha vertical a meia distância entre Manuel e Maria, que se olham.
Todos batem palmas em câmara lenta. Tudo acontece já com grande lentidão.
Madalena morde a vela.
O olhar de Maria eleva-se seguindo a linha vertical do fumo.
O olhar de Manuel eleva-se seguindo também o fumo.
Plano aberto do céu onde o fio do fumo já mal se vê.

 

FIM