Produção short/age. © Todos os direitos Reservados.
Este autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

Gurgulio

um argumento de
Jerónimo Rocha
trilha sonora de
L Filipe dos Santos
ilustrado por
Susa Monteiro

Flagelado por uma crise de meia-idade, Pedro regressa à sua cidade natal em busca de um vislumbre da sua identidade, entretanto esquecida num lugar onde já foi feliz, e que agora consome obsessivamente a sua imaginação.

FADE DE NEGRO PARA

1. EXT. ESTAÇÃO DO ROSSIO – LISBOA – DIA

TRACK IN ao nicho central da fachada da estação do Rossio. Turistas e os demais transeuntes entram e saem da estação, sob o sol brilhante de Lisboa.

 

NARRADOR
Uma peanha na fachada principal da Estação do Rossio onde outrora estivera uma estátua, agora encontra-se vazia. Aparentemente
terá sido derrubada por um turista que queria tirar uma selfie com a figura, fazendo-a tombar na calçada portuguesa e no usufruto da gravidade, desfazendo-a em pedaços. Ainda assim o espectro dessa escultura, pejado de simbolismo
sebastianista, assombra o local,
velado à grande maioria dos habitantes deste não-lugar, numa
ambiência de antecipação.

 

CORTA PARA NEGRO

Surge TÍTULO:
“GURGULIO”

CORTA PARA

2. EXT. RUAS DE VISEU – MONTAGEM – DIA

CÂMARA LENTA. Chove torrencialmente nas ruas de Viseu. Uma CRIANÇA DE CABELO ESCURO corre, de braços abertos. Só se vislumbram as suas costas e nuca. Enquanto simula o voo, passa por várias zonas do centro da cidade.
a) Rua Escura
b) Rua Direita
c) Parque Aquilino Ribeiro
d) Praça da República
e) Avenida Dr. António José de Almeida

 

3. INT. CAMIONETA – DIA

A criança passa pela janela onde escorre água da chuva. Sentado no lugar à janela, observando a criança, está PEDRO, 38 anos, alto, sobretudo sobre blusa e jeans.
Puxa lentamente a pele do sabugo das unhas.
O seu tronco balança numa curva.

 

4. EXT. ESTAÇÃO DE CAMIONAGEM DE VISEU – GARAGEM – DIA

A camioneta estaciona e começam a vazar PASSAGEIROS.
No meio dos viajantes que saem está Pedro.

 

5. INT. ENTRADA DA ESTAÇÃO DE CAMIONAGEM – DIA

Pedro sobe as escadas até à saída da estação.
À porta está CLARA, 38 anos, cabelo curto, larga de ossos, bochechuda, sorridente.

 

CLARA
Anda cá, maroto.

 

Pedro aproxima-se, meio atrapalhado, mas Clara puxa-o até si num abraço.
Pedro pára de resistir e amolece nos seus braços.

 

PEDRO
É bom ver-te.

 

Desprendem-se.

 

CLARA
Vá, temos hora e meia.
A Carolina está com os avós até à hora de almoço. Depois tenho de ir.
Onde é que te apetece ir?

 

6. EXT. RUAS DE VISEU – DIA

PLANO DE PORMENOR: As folhas de uma árvore fustigadas pela chuva. A chuva abranda até parar.
Clara e João atravessam a Praça da República e entram no Parque Aquilino Ribeiro.

 

PEDRO
…Mudou-se para Basileia.
Agora trabalha na administração
de uma ONG. Tens visto o Vasco?

 

CLARA
Vi-o faz uns anos.
Cruzamo-nos num restaurante.
Está igual. Está igualzinho.
Tomou conta da fábrica dos pais.
Lembras-te como ele era?
Lembras-te da Dona Graciela lhe
dar o prémio do rapaz mais atinado?

 

PEDRO
E o Jorge? Que tal?

 

CLARA
Está fixe. Continua na secretaria
do hospital.
(olha Pedro nos olhos)
Porque é que estás aqui?

 

Pedro senta-se num banco de jardim.

 

PEDRO
Não sei.

 

CLARA
Está tudo bem contigo?

 

PEDRO
Não sei.
(pausa)
Despedi-me. Amanhã tenho uma
entrevista no Porto.

 

CLARA
Tu ontem soavas estranho.
O que é que aconteceu, maroto?

 

PEDRO
Estou cansado. Daquela cidade.
Acho que nunca gostei de lá estar.
(aponta à distância)
Lembras-te de haver ali um escorrega?
Nós vinhamos brincar para aqui com o André.
Acho que quando saí daqui sempre
achei que ia voltar.

 

CLARA
A tua mãe está bem?

 

PEDRO
Está, está.

 

Clara corta o contacto visual e olha para o parque.
CRIANÇAS brincam.

 

CLARA
Então vieste matar saudades?

 

Pedro sorri.

 

PEDRO
Uma das minhas primeiras memórias
é de um sítio onde brincava em
criança. Uma casa abandonada. Uma
fachada com estátuas que me
olhavam de boca aberta. Não tinha
telhado, apenas restos de
paredes. Como as ruínas de São
Paulo em Macau, sabes?

 

Pedro olha para Clara.
Clara anui.
Pedro baixa os olhos e volta a observar o parque.

 

INTERCORTA COM

VISÃO
PUSH IN à criança de cabelo escuro, a brincar sobre escombros, de costas. O dia é soalheiro. À sua volta estão paredes semi desabadas. A natureza apoderou-se há muito do local.

INTERCORTA COM

 

PEDRO (CONT’D)
Só tinha a fachada da rua,
mas se conseguisses passar a porta
entravas num matagal. Era como um
portal para outro mundo. Num momento estavas na cidade e no
momento seguinte estavas na selva… ou no sítio onde
quisesses estar. E aquelas estátuas, hipnotisantes, a
guardar a entrada. A primeira vez
que fui lá brincar, desapareci
durante horas e o meu pai ficou
muito aflito comigo. Disse-me
para nunca mais desaparecer sem
lhe dizer nada. Há uns meses li
uma notícia que uma estátua na
estação do rossio tinha sido
destruída por um turista.
Deitou-a abaixo sem querer…
e fê-la em cacos. Não sei bem
porquê, mas aquilo fez-me lembrar
a casa abandonada e as suas
estátuas de guarda. Essa estranha
familiaridade fez-me sentir mais
em casa do que o meu apartamento,
do que o meu trabalho, do que as
pessoas que me rodeiam. Desde
então tenho sonhado muitas vezes
com esse sítio.

 

CLARA
Com esse sítio ou com quem eras
quando lá estavas?

 

Pedro olha para Clara.
Clara sorri. Olha na direção do seu umbigo.

 

CLARA (CONT’D)
Cuidado, maroto. Esse Viseu é só teu.
Lembras-te que queria ir para Nova York?
O meu sonho era viver lá.
Quando tínhamos 15 anos.
Entrar num gabinete de design e viver em Manhattan.
Com vista para o Central Park. Agora vivo aqui
e tenho a minha vida aqui. E não saí daqui.
Aliás, a minha vida expandiu-se num raio de
15 quilómetros, se tanto.
E sabes que mais? Estou contente
com o que tenho. Não é uma cedência.
Descobri que ainda não
sabia o que queria. Descobri que
sou capaz de perceber o que quero
à medida que as coisas vão
acontecendo. Que a vida vai
acontecendo. Quem sabe? Mas se
isso não acontecer, não faz mal.
O que tenho deixa-me feliz.

 

PEDRO
Achas que sim? Mesmo?
Clara pega na mão de Pedro
e leva-a à sua barriga.
Pedro fica enrascado.
Clara sorri.
Pedro finalmente percebe.

 

CLARA
(acenando com a cabeça)
Sim.

 

PEDRO
A sério?

 

CLARA
Vai ser o cabo dos trabalhos. Eu
ainda não tenho contrato e o Joca
vai ter de conseguir o aumento
que lhe andam a prometer à que
séculos… mas o que tenho
deixa-me muito feliz.

 

Pedro solta o braço gentilmente e levanta-se.

 

PEDRO
Vamos andar.

 

Clara reclina-se para trás, no banco. Está pensativa.

 

CLARA
Essa casa que me falas não me diz
nada, mas eu também não sou a
melhor guia em Viseu. Em casa de
ferreiro… Mas quem saberia?
Tens alguém da tua família aqui a
viver? Alguém que soubesse onde
andavas em puto?

 

PEDRO
Não. Acho que não.

 

Clara roda ligeiramente a cabeça e franze os olhos.

 

CLARA
Não!? Mesmo? Tu és daqui.
Deves ter algum familiar.

 

PEDRO
Tinha umas Tias Avós… Tia Avós?
Tias Avó? Enfim… Tinha umas
familiares que viviam perto da
Sé, na rua escura.

 

CLARA
Ora aí tens.

 

PEDRO
Clara. Tias Avós. Já devem ter
morrido há muito tempo.

 

CLARA
Lembras-te onde viviam?

 

PEDRO
Se visse a casa acho que sim.
Não me lembro do número.

 

Clara levanta-se.

CLARA
Eu levo-te lá.

 

PEDRO
Clara!

 

CLARA
Pedro! O quê?

 

PEDRO
Olha-me agora eu a ir bater a
casa de umas velhinhas…

 

CLARA
E? Tens a perder o quê?

 

Pedro não responde.

 

CLARA (CONT’D)
Hum? Vá!
Pedro sorri.

 

CORTA PARA

7. EXT. RUA ESCURA – DIA

Pedro e Clara aparecem vindos da Rua Direita.
Clara pára e abre os braços a Pedro.

 

CLARA
Maroto. Tenho de ir.

 

Pedro abraça Clara.

 

PEDRO
Obrigado. Eu telefono-te.
Manda um abraço ao Jorge.

 

CLARA
Claro que sim. E tu cuida-te,
está bem? Não te quero ver assim.
Resolve o que tens a resolver e
olha em frente, maroto.

 

Clara parte, deixando Pedro no início da rua.
Pedro avança rua adentro, nervoso.
POV de Pedro. Passa por vários transeuntes. Todos parecem encará-lo.
Uma porta que ele reconhece.
Hesita.
Leva a mão à porta.
É a MÃO de uma criança que bate à porta.
Silêncio.
Do outro lado da porta ouvem-se vozes de três VELHAS que se interpelam e completam a falar.

 

CARMINDA (OFF)
Pergunta quem é.

 

CARLOTA (OFF)
Deixa-me ver.

 

CLARINDA (OFF)
Quem é?

 

PEDRO
Olá…esta é a casa
das tias Graça?

 

Depois de algum reboliço vindo dentro de casa, a porta abre-se numa frincha, segura por uma corrente.

 

PEDRO (CONT’D)
O…Olá. Sou eu. Hum. O Pedro.
O vosso sobrinho. Sobrinho neto.

 

Uma cara enrugada espreita.

 

CLARINDA
O filho do Raúl?

 

Outra cara espreita…

 

CARLOTA
Deixa-me ver.

 

…seguida de uma terceira.

 

CARMINDA
“Deixa-me ver?” És cega!

 

A porta fecha-se.
Silêncio.
Pedro fica parado, atónito.
A porta abre-se de súbito.

 

Três anciãs – CLARINDA, CARLOTA e CARMINDA – observam Pedro.

 

CLARINDA
Aproxima-te, por favor.

 

CARLOTA
Mais perto, filho.

 

CARMINDA
Sim, mais perto.

 

Pedro aproxima-se lentamente e repara num par de ÓCULOS de tartaruga, de aspecto pesado, lentes redondas e amareladas, pousado sobre a mesa de mármore da entrada, ao lado de uma redoma em vidro com um arranjo floral seco e um pássaro empalhado no seu interior.

 

PEDRO
Será que estão à procura disto?

 

Pedro aponta para o par de óculos.
Uma das anciãs agarra-o avidamente. As outras vão alternando, à vez, colocando o par de óculos.

 

CARMINDA
Pedro?

 

CARLOTA
O nosso Pedro?

 

CLARINDA
O Pedrinho?

 

Pedro sorri.

PEDRO
Sim, Tias, sou eu.

 

CORTA PARA

8. INT. SALA DE ESTAR – TARDE

O BADALAR de um relógio de parede. Paredes forradas a papel de parede com uma trama de arranjos florais. Móveis pesados e escuros.
Um relicário.
Quadros a óleo com enormes molduras douradas.
Uma mesa de café apresenta um enorme bule cerâmico, várias chávenas e um prato de biscoitos.
Pedro está sentado numa poltrona, com um álbum de fotografias na mão.
Do lado oposto, fechando um círculo, as três anciãs observam Pedro.

 

CARMINDA
Como está a tua mãe?

 

PEDRO
Bem, obrigado.

 

CARLOTA
Nós fomos ligando.

 

CLARINDA
Mas nunca vos apanhamos em casa.

 

PEDRO
Pois, ela não ouve muito bem de
um dos ouvidos. E eu já saí de
casa faz uns anos.

 

Uma fotografia de uma criança de cabelo escuro, de costas, dá a mão a um homem parecido com Pedro.

 

PEDRO (CONT’D)
Esta foi a minha mãe que
vos arranjou, não foi?
Eu tenho uma igual.

 

CARLOTA
Eram as fotografias do tio
Carlos. O nosso Raúl com o
Pedrinho. Muito bonita.

 

CARMINDA
Muito bonita.

 

CLARINDA
Quando tu e a tua mãe se mudaram,
perdemo-vos o rasto. O tio Carlos
é que nos ia dizendo como estavam.

 

Silêncio.

CLARINDA
E tu, filho, o que fazes?

 

CARLOTA
Não sabemos nada de ti.

 

CARMINDA
Porque é que não nos vieste
visitar antes?

 

PEDRO
Eu… tenho uma vida muito
ocupada. E viajo muito.

 

 

Silêncio.

 

PEDRO (CONT’D)
Mas em resposta à vossa pergunta,
toco numa orquestra.

 

CARMINDA
Ai que maravilha.

 

CARLOTA
Meu rico menino.

 

CLARINDA
Como o pai.

 

PEDRO
Como o pai?

 

Carminda levanta-se a custo.

 

CARLOTA
Deixa estar, eu vou buscar.

 

CLARINDA
Olha a ciática, Minda.

 

As três começam a barafustar entre elas até Carminda desaparecer por uma porta.

 

PEDRO
O meu pai tocava?

 

CLARINDA
Quando ele era novo, nós
oferecemos-lhe uma flauta para
ele tocar na escola.

 

CARLOTA
Tinham um recital
no final do ano.

 

CLARINDA
Mas ele não gostava do som.

 

CARLOTA
Dizia que não era o
que ouvia nos filmes.

 

As duas desatam a rir-se, num esforço entre a falta de ar e a risada que mais parece uma tosse.

 

CLARINDA
Eu sabia lá o que ele queria
dizer com aquilo.

 

CARLOTA
Os filmes…

 

Carminda regressa com uma PEQUENA MALA.

 

CARMINDA
Até que arranjou
o que ele queria.

 

A Carminda arrasta-se lentamente, demorando uma eternidade a entregar a pequena mala a Pedro.

 

CLARINDA
Já te queríamos dar isto faz
muito tempo, mas nunca
mais te vimos.

 

Pedro abre a mala cuidadosamente. Lá dentro está um SAXOFONE.

 

PEDRO
Não sabia que ele tocava.

 

CARLOTA
Ele incompatibilizou-se
com o instrutor dele…

 

CLARINDA
Foi uma estupidez.

 

CARMINDA
Foi uma pena.

 

CARLOTA
O que tocas, filho?

 

PEDRO
Clarinete.

 

Pedro olha para o relógio de parede.

 

PEDRO (CONT’D)
Tenho de me ir embora. Tenho de
apanhar a camioneta para o Porto.

 

CARLOTA
Já, filho?

 

CLARINDA
Não deu tempo para nada.

 

CARMINDA
Ao menos toma o teu chazinho.

 

Pedro levanta-se.

 

PEDRO
Desculpem-me. Tenho mesmo de ir.

 

CARLOTA
Leva o Safoxone.

 

CLARINDA
É para ti.

 

CARMINDA
O teu pai ia querer.

 

CORTA PARA

9. EXT. RUA ESCURA – DIA

A porta abre-se e sai Pedro.

 

PEDRO
Obrigado por tudo.

 

CARLOTA
Estamos aqui, filho.

 

CLARINDA
Vem visitar-nos.

 

CARMINDA
E diz com antecedência para te
fazermos qualquer coisa da
próxima vez.

 

PEDRO
Obrigado.

 

Pedro acena enquanto se afasta.
Pára.

 

PEDRO (CONT’D)
Desculpem! Mais uma coisa!

 

CARLOTA
Sim?

 

CLARINDA
Que foi, filho?

 

PEDRO
Alguma de vocês se lembra de
alguma casa abandonada onde
costumava brincar em criança?
Isto diz-vos alguma coisa?

 

CARMINDA
Uma casa abandonada…

 

CARLOTA
…onde brincavas em criança?

 

CLARINDA
A casa das bocas. Era do outro
lado da casa do teu tio Carlos.

 

CARMINDA
Na Rua das Bocas!

 

PEDRO
Rua das Bocas?

 

CARLOTA
Vá, Minda, esse não
é o nome da rua.

 

CARMINDA
É assim que toda a gente a chama!

 

CARLOTA
Mas não é o nome da rua!

 

CARMINDA
Eu sei lá agora.

 

CLARINDA
Rua João Mendes. O teu pai ficou
muito arreliado a primeira vez
que te perdeste por lá.

 

PEDRO
(afasta-se)
Eu sei.

 

CARMINDA
Rua João Mendes!

 

PEDRO
Rua João Mendes. Obrigado.

 

Pedro volta a acenar.

 

PEDRO (CONT’D)
E obrigado pelo chá!

 

Pedro acelera o passo.
Olha para o seu TELEMÓVEL.
Abre a aplicação do serviço de transportes.

“PARTIDA ÀS 18.00”

O relógio marca as 17:27.
PLANO GERAL. Pedro chega ao fim da rua, que se bifurca em duas direções. Pergunta algo INAUDÍVEL a uma MULHER que passa. A mulher aponta à esquerda. Pedro agradece e fica parado a meio da rua pedonal. Olha repetidamente entre a direita, a esquerda e o seu telemóvel. Decide ir pela esquerda.

CORTA PARA

10. EXT. ESQUINA – FIM DA TARDE

Pedro vê a tabuleta.
“RUA JOÃO MENDES”
Olha para o seu telemóvel.
17:44
Pedro recua.
Quando se está a voltar para trás vê algo que o faz parar onde está.
Um rapaz de cabelo escuro corre rua adentro.

 

PEDRO
Ei! Espera!

 

Pedro segue o rapaz…

 

11. EXT. RUA DAS BOCAS – FIM DA TARDE

… até parar, estarrecido.
A criança entra por uma porta apodrecida. TILT UP para revelar um conjunto de GÁRGULAS.
Pedro observa, congelado. Caem pingas de água na sua cara.Começa a chover.
PLANO DE PORMENOR de uma gárgula que representa uma figura masculina, com as restantes em pano de fundo. Começa a soltar um fio de água da sua boca.
A Casa das Bocas é um prédio devoluto, de paredes rosa desbotado, com um gerador anexo e toldos que indicam a intenção de obras.
Pedro entra na Casa das Bocas.

 

12. INT. CASA DAS BOCAS – FIM DA TARDE

Pedro aparece pela porta.
POV de Pedro. O interior da casa está a céu aberto. Por detrás da fachada principal, o matagal apresenta-se denso. Algumas partes das divisões ainda estão demarcadas, com pedaços das paredes ainda levantadas.
Pedro caminha para o interior da casa, deixando-se molhar.
Senta-se num pequeno monte de escombros.
Pousa a pequena mala no chão, mas o trinco está solto e esta abre-se.
O saxofone cai na terra.
Pedro olha para o objecto polido, que reflete a sua figura deformada na campana.
Pedro recolhe o Saxofone do chão com cuidado, hipnotizado pelo seu reflexo.
Uma silhueta vislumbra-se no reflexo polido do instrumento de sopro. Do fundo, por detrás dos restos de uma parede em ruína, aparece a figura de uma criança, deformada pelo reflexo. Levanta-se do chão e aproxima-se lentamente. O detalhe da sua cara é incompreensível.

 

PEDRO
A primeira vez que vim cá
brincar, desapareci durante horas
e o pai ficou todo aflito.

 

Pedro sorri, contemplativo.

 

PEDRO (CONT’D)
(enquanto o sorriso se desfaz)
Disse-me para nunca mais
desaparecer sem lhe dizer nada.
Irónico, não é? Lembras-te?

 

Vista pelo reflexo, a figura pára.

 

PEDRO (CONT’D)
Se soubesses quantas saudades
tinha de ti… de te ver outra
vez. Lembras-te do tanto que
brincaste aqui? Das aventuras.
Dos mundos. Se soubesses a falta
que me fazes. Eras imparável.
A tua determinação…

 

Vista pelo reflexo, a figura dá um passo a trás.

 

PEDRO (CONT’D)
Não te vás embora. Fica.
Vem até mim.
E se pudesses ficar aqui comigo?
Para sempre.

 

Vista pelo reflexo, a figura continua a recuar.
A água escorre na cara de Pedro.

 

PEDRO (CONT’D)
O que é queres de mim?
Fiz tudo o que podia por ti.
Vivi tudo o que podia por ti.
Experimentei tudo o que podia
por ti. Não te vou dizer o que
te aguarda, mas todas as horas que
passaste a antecipar, a imaginar,
a esperar, com o teu coraçãozito
a bater cheio de força, foram…
(pausa, para si)
Se ao menos soubesses que o mundo
lá fora era menor do que aquele
que aqui tinhas.
Tão mais pequeno…
Já nada do que é novo me…

 

PUSH IN à cara de Pedro. Este vira-se, muito lentamente, para encarar o que está atrás de si.
O saxofone cai no chão.

CORTA PARA

13. EXT. CASA DAS BOCAS – FIM DA TARDE

CÂMARA LENTA. Chove torrencialmente. As gárgulas bolsam correntes de água. Uma CRIANÇA DE CABELO ESCURO sai pela porta da Casa das Bocas e corre, de braços abertos. Só se vislumbram as suas costas e nuca. Enquanto simula o voo, passa por várias zonas do centro da cidade.
a) Rua Escura
b) Rua Direita
c) Parque Aquilino Ribeiro
d) Praça da República
e) Avenida Dr. António José de Almeida

 

14. EXT. ESTAÇÃO DE CAMIONAGEM – FIM DA TARDE

O último PASSAGEIRO sobe os degraus da porta frontal de uma camioneta.
O MOTORISTA termina a conversa que tem com um COLEGA e entra.
A camioneta arranca, contornando o estacionamento e partindo pela avenida abaixo.
A criança de cabelo escuro corre avenida abaixo até perder a camioneta de vista.

 

15. INT. CAMIONETA – FIM DA TARDE

Os PASSAGEIROS acomodam-se para a viagem que aí vem.
Um lugar reservado. Um lugar vazio.

 

CORTA PARA

16. RUA DAS BOCAS – DIA

O dia é soalheiro. A casa das bocas encontra-se totalmente restaurada. Uma placa em acrílico com as iniciais USF ladeia a entrada. Um CASAL entra pela porta automática enquanto uma IDOSA sai.

NARRADOR
Uma casa senhorial em Viseu
outrora devoluta, encontra agora
uma nova vida de utilidade
pública. Na sua fachada
ostentam-se onze gárgulas, cada
uma com a sua peculiar estória.
Estas entidades, pejadas de
simbolismo obsoleto, assombram
o local, velado à grande maioria
dos transeuntes desatentos, numa
ambiência de antecipação.

 

As várias GÁRGULAS apresentam-se restauradas na fachada. A última a surgir em quadro é a representação de um HOMEM QUE TOCA UM INSTRUMENTO DE SOPRO.
FADE PARA NEGRO
CRÉDITOS FINAIS

 

FIM